Fui uma criança feliz, um menino levado como a maioria dos moleques que davam vida ao lugar onde nasci. Tinha uma jabuticabeira só minha e, de sobra, podia correr livre pelas ruas quase sem movimento lá de Mirai. Andava descalço e nem me importava com as pedras que ainda hoje pavimentam aquelas ruazinhas que a mim pareciam grandes avenidas, vias próprias para o escoamento dos meus sonhos.
Corria a cidade de ponta a ponta e empinava minhas fantasias em forma de papagaio, jogava bola-de-gude como todos os outros meninos, mas era da zona rural que eu mais gostava. Quando não estava na Fazenda União era na Fortaleza, em casa dos meus tios Argemiro e Castorina, que eu passava os dias de feriados e finais de semana.
Na Fortaleza eu não era rei nem governava o pomar, mas tinha os banhos de rio e o desafio na roda d água de um velho moinho inativo. Encarava o desafio, mas, por dentro, morria de medo. Participava da brincadeira só para não parecer menos corajoso, “menos homem”, que meus primos Jonas e Daniel. Era à noite que o sofrimento aumentava: não conseguia dormir. Fechava os olhos e me via dentro daquele monstro redondo de madeira que rangia como se fosse engolir-me de vez.
Suspensa sobre um reservatório escuro de águas que meus olhos viam como um profundo abismo, a roda girava senhora de si, ignorando que em seu interior havia um menino medroso desafiado pela coragem de dois primos, conhecedores de todos os segredos daquele lugar.
Engraçado é que todos os meus medos desapareceram, mas ainda hoje me lembro daqueles terríveis desafios. Basta-me fechar os olhos debaixo do chuveiro para me encontrar girando dentro daquela horrenda roda d água.