(Das deusas de nossas ruas)
Toda rua tem uma deusa. Pode não ser a mais bonita do bairro, mas, com certeza, daquele nosso universo particular – a rua onde crescemos em meio aos sonhos e uma realidade de brincadeiras -, é a mais bela. A deusa da minha rua tinha nome de santa, Clara. Estudávamos juntos, brincávamos juntos e juntos também sonhávamos, mas o tempo que possibilita a realização de sonhos é o mesmo que separa pessoas, fazendo-as dobrar outras esquinas e desaparecerem vida a fora…
Clara tinha um lindo par de olhos azuis e cabelos loiros, naturalmente platinados. Era um sonho e foi, por alguns bons anos, uma gostosa realidade em minha vida…
Todo menino tem uma deusa. Pelo menos os moleques com os quais eu cresci e dividi fantasias – a primeira bicicleta, os chicabons e a bola G-18 – tinham uma. Talvez até a mesma, pois os sonhos de menino quase sempre são iguais, diferentes na realidade, mas semelhantes em grau de devaneio. Então, é aí que mora o perigo, abrigado naquela terrível indagação: “Por que ele tem e eu não?”.
Às vezes o simples fato de um conseguir chegar ao galho mais alto da mangueira do amplo quintal da dona Aurora e o outro não, gerava esse questionamento que, invariavelmente, resultava numa breve aleivosia…
Clara deve estar em algum lugar nesse momento. Talvez os cabelos não sejam mais loiros e até, com um par de lentes, quem sabe, tenha trocado a cor dos olhos, mas a deusa da minha vida nos meus tempos de menino continuam do mesmo jeito, repousando num cantinho especial de minha memória.
Quanto aos sonhos, eu e alguns moleques daquela rua conseguimos realizar boa parte deles, mas outros, infelizmente, ainda não alcançaram o galho mais alto da mangueira, pois desistiram de continuar tentando. Alguns se entregaram ao cansaço e jogaram a toalha antes do fim da luta. O tempo lhes roubou a resistência e até mesmo a esperança de pegarem as frutas mais saborosas bem lá no alto…
O que quero dizer com isso? Não desista de subir nos galhos mais altos das mangueiras da vida. Faça de cada dia um pé de apoio, pois como os meninos e as ruas da minha infância, cada um tem uma deusa para preservar e um quintal tão amplo como o da dona Aurora para colher os frutos dos seus sonhos.
* O texto “Das deusas de nossas ruas” foi publicado originalmente no dia 17 de novembro de 2013
“Não desista de subir nos galhos mais altos das mangueiras da vida. Faça de cada dia um pé de apoio, pois como os meninos e as ruas da minha infância, cada um tem uma deusa para preservar e um quintal tão amplo como o da dona Aurora para colher os frutos dos seus sonhos.” Pensar nisto nos leva para frente.
Com doçura e com afeto. Mesmo assim um puxão de orelhas para que não possamos desanimar.
Um beliscão carinhoso para nos acordar.