O Centrão pode até tentar, mas não vai conseguir blindar o presidente Jair Bolsonaro lhe entregando de presente um cargo de senador vitalício. A avaliação é da jurista e mestre em Direito Penal Jacqueline Valles. A advogada conta que a ideia é tão absurda quanto inconstitucional. “É uma aberração que viola o Artigo 1º, que é a base da democracia brasileira e estabelece que os representantes do Executivo e Legislativo são escolhidos, obrigatoriamente, pelo povo e por meio do voto”, diz.
Jacqueline explica que a iniciativa ainda esbarra em outra cláusula pétrea: o princípio da separação dos poderes. “A Presidência é um cargo do Executivo e o Senado é uma função do Legislativo. O Artigo 2º da Constituição estabelece a separação e independência dos Poderes, logo, não permite esse combo em que o eleitor votaria para presidente e ganharia um senador depois do fim desse mandato. A única forma de qualquer brasileiro conquistar uma cadeira no Senado ou na Câmara é por meio de uma eleição”, reforça.
Cláusulas pétreas não podem ser alteradas por meio de Proposta de Emenda à Constituição (PEC). “Esses artigos só podem ser modificados ou revogado por meio da convocação de uma nova Assembleia Constituinte, com representantes eleitos pelo povo especificamente para criar uma Constituição inteiramente nova, o que, convenhamos, é um processo complexo e longo, leva anos”, explica.
Queda certa
A jurista acredita que, mesmo que o Senado aprove a proposta, a medida deve cair no Supremo Tribunal Federal (STF). “Qualquer entidade legítima (partidos políticos; entidades representativas, como sindicatos e a OAB, e órgão do Judiciário, como o Ministério Público) pode entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) junto ao STF pleiteando a anulação de uma lei claramente anticonstitucional”, avalia a mestre em Direito Penal.
A proposta, que corre nos bastidores do Congresso, é de iniciativa de parlamentares do Centrão e visa impedir a prisão de ex-presidentes. Isso beneficiaria diretamente Bolsonaro, alvo de diversas investigações e processos na Justiça. “O cargo de senador vitalício daria aos ex-presidentes os benefícios do foro privilegiado, ou seja, só poder ser preso em flagrante e por crime inafiançável, ser processado apenas em tribunais especiais e ter imunidade de opinião”, detalha a criminalista.
Outros países
Jaqcqueline explica que o cargo de senador vitalício para ex-presidentes existe em alguns países, mas com limitações. “A Itália e o Paraguai, por exemplo, têm, mas neles a função tem caráter simbólico. Esses senadores têm direito a se manifestar no Senado, mas não a votar projetos de lei. O benefício do cargo para eles é, justamente, manter o foro privilegiado”.
Na Itália nem o presidente é eleito pelo voto popular, e sim pelo Parlamento. Isso permite ao país determinar que outros cargos representativos possam ser preenchidos mesmo sem voto. No caso do Paraguai, os senadores vitalícios também não votam, mas isso está na base da Constituição do país, o que não é o nosso caso.
Jacqueline Valles acredita que a criação do cargo de senador vitalício abriria precedente para que estados e municípios também criassem cargos de deputados estaduais e vereadores vitalícios, o que também garantiria foro privilegiado a ex-governadores e ex-prefeitos. “Isso poderia gerar um efeito cascata que levaria impunidade a gestores que cometessem crimes durante os mandatos no Executivo”, completa.